Sexta-Feira, dia 18 | Sai-se do trabalho directamente para a sala de cinema mais próxima, enquanto que a estrada percorrida permitiu que se notasse que os céus iriam estourar em pouco tempo. O jantar deu-se normalmente e a escolha do filme recaiu sobre a Vida de Pi. Já não me lembrava da última vez que um filme me tivesse deixado sem palavras, completamente colada à cadeira, tal era o encanto e ao mesmo tempo o respeito para com o que lá era retratado. Já não me lembrava da última vez que tinha ficado a trocar impressões, enquanto os créditos decorriam. Já não me lembrava de ter sido completamente abalada por algo tão simples como um filme. Mas o que é certo é que isso aconteceu, dadas as imagens, a problemática envolvida e todo o desenrolar de uma história que me roça o familiar, como é o caso de um naufrágio. Vim a pensar no maior respeito que tinha que ter para com a Natureza, vim a pensar em catástrofes como o tsunamis, cheias, tornados, enxurradas e outras que tais que põem em causa, de uma forma rápida e cruel, a vida do ser humano. À medida que me ia aproximando de casa o mau tempo fazia-se sentir, o carro abanava imenso, chovia intensamente. Vim imensamente devagar e quando me tranquei dentro de casa até parecia mentira. Sentia-me incomodada com as últimas emoções mas o cansaço falou mais alto. A meio da noite fui acordada por um temporal do qual não há memória.
Sábado, dia 19 de Janeiro | O rasto de destruição pela manhã, a caminho do trabalho, era evidente e, mais uma vez, foi precisa muita cautela nas estradas porque, por duas vezes mais, atravessei-me na faixa de rodagem contrária. Chegada à Farmácia, a ordem era para fechar. Desligar tudo o que tinha ficado ligado da noite de serviço passada e fechar. Mas as pessoas começaram a aparecer, umas atrás das outras, sem nada de urgente. Não era possível estar com a porta aberta, tendo eu que, de 5 em 5 minutos, ir abrir caminho a caras desesperadas que me batiam incessantemente à porta, criticando o "fim do mundo" que se fazia sentir. Nisto começa o portão a bambolear como se de plasticina se tratasse, ameaçando sair disparado a qualquer momento. Foram antenas que voaram, foram placas sinalizadoras que passaram a centímetros de utentes, foi um miúdo e o avô que foram derrubados pelo vento aos meus pés. Foram telhas que voaram e se partiam ao alto com o meu carro. Foram árvores que foram arrancadas pela raiz. Foi um esforço sobre-humano para me aguentar de pé, enquanto socorria o que era necessário. Foi a electricidade que falhou de vez e a urgência de fazer as seguranças diárias e de arranjar meios para, pelo menos, o frigorífico continuar a refrigerar os medicamentos. Foi a urgência de acudir à minha avó que ficou sem chaminé e aos meus tios que não tinham qualquer meio de iluminação na nova casa. Foi um desgaste que se instalou mas que confundi com cansaço.
Terça-Feira, dia 22 de Janeiro | Já no fim do dia, e sem que qualquer manifestação o fizesse prever, o temporal voltou. Obrigou-nos a ficar novamente sem electricidade, agora fechados dentro de 4 paredes, eu e o meu caro colega, à luz da vela e a comer Doritos. Bem mais calmo do que o de sábado, pensávamos nós. Mas o que é certo é que voltamos ao mesmo. Só diferiu no tempo que durou. O regresso a casa foi feito com o foco acentuado nas músicas que o rádio tocava. As imagens dos últimos acontecimentos atropelavam-se na minha mente e certos pormenores eram recordados em loop. Sozinha, na escuridão, a conduzir, com aquele filme a decorrer na minha cabeça, foi o bastante para as lágrimas me caírem quatro a quatro pelo rosto. O coração começou a bater desenfreado, foi necessário controlo da respiração. Foi um misto de alívio com medo a assolar-me o ser, como já não acontecia há um ano. Depois de recomposta, depois de jantar e depois de tudo ter voltado aos conformes, decidi ser masoquista e assistir ao resto do filme O Impossível, que já tinha iniciado na noite anterior. Sim, eu sabia perfeitamente que se tratava de um filme que retratava o tsunami de 2004, do qual tive conhecimento em Lisboa enquanto vivia o Encontro Europeu de Taizé. Sim eu sabia que desencadearia em mim mais uma série de emoções que iriam agravar as já existentes. Mas era preciso. Era preciso pôr tudo cá para fora o que ficou entalado enquanto se teve que ser forte para lidar com a situação. Felizmente ninguém teve lesões de maior. Felizmente os estragos só foram em bens. Mas podia não ter sido tão simples assim. O ser humano só toma verdadeiramente conhecimento e noção do perigo, bem como da força e determinação de certos acontecimentos naturais quando os vive. Desta vez foi a minha vez. Convém não a esquecer, fingindo que não aconteceu. Aconteceu sim, está aqui relatada e, com ela, aprendi muito. Sempre tive uma pontaria certeira para certos e determinados acontecimentos serem vividos com uma intensidade acima daquela que se esperaria.
2 comentários:
Nós que vivemos à beira-mar fomos bem atingidos.
Podes crer! Foi um tal destruir... e deixar o medo pairar! Respeito é o que mais tenho! :)
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