A morte é triste. Digam o que disserem, acreditem na vida pós morte ou não, o primeiro sentimento, perante a perda de um dos nossos, é a tristeza. Essa tristeza intensifica-se e agrava-se à medida que a ligação que tenhamos com a pessoa seja maior ou menor. Hoje morreu o irmão da minha avó. Estou triste, secalhar não pela perda em si, visto que era uma pessoa que a maior parte da minha vida esteve afastada, mas sim porque foi um ser humano que passou os últimos meses da vida dele numa instituição de cuidados paliativos longe de casa, tendo como única visita assídua a minha avó. Ele toda a vida esteve emigrado, tendo regressado há meia dúzia de anos a Portugal. Era um bon vivant, cismadinho como nunca vi, mas era boa pessoa. Depois da morte da mulher, apaixonou-se cegamente pela cunhada da minha avó, também ela viúva, mas teve o maior desgosto da vida dele. Foi tratado como lixo, quando ela deixou de se interessar por ele, afastando filhos e família que só lhe queriam abrir os olhos, que só queriam o bem dele. Valeu-lhe a minha avó, que tantas vezes foi esquecida. Valeram-lhe os meus pais, os meus tios, eu, a minha irmã e os meus primos que, por amor à minha avó, tudo fizemos para lhe salvar a vida, para a tornar menos insuportável. Mas de nada adiantou. Um efeito secundário da anestesia geral atirou-o para uma cama de hospital, após uma intervenção cirúrgica para extrair um cancro nas vias respiratórias. Traqueostomizado, revoltado, acamado, aflito em secreções produtivas e cada vez mais débil, viu-se obrigado a estar longe de casa porque necessitava de cuidados durante 24h. Levei a minha avó a visitá-lo algumas vezes e foi uma realidade arrepiante aquela a que assisti. Passei a tarde do dia 1 de Janeiro nas urgências do hospital, para que ela pudesse fazer-lhe companhia enquanto estava lá encostado a um canto, no meio de tantos desatinos e sufocos, à espera de uma alta que demorou horas a chegar. Estou triste porque morreu sozinho. Estou triste porque acredito que muita coisa ficou por ser dita, muitas dores ficaram por ser partilhadas. E, para ser sincera, é nisto que me ponho a pensar vezes sem conta: o triste final que tantos seres humanos têm. Abandonados. Presos a uma cama. Deprimidos. Em agonia. Solitários. Em constante choro. Em sofrimento. Hoje estou triste porque ele só tinha a minha avó para lhe agarrar a mão, para lhe acalmar a revolta, para estar presente quando acordava de um sono de cansaço, ao domingo à tarde. E acredito que tantas vezes lhe passou pela cabeça onde estariam os amigos do banco da praça, os parceiros das cartas, os compadres, a mulher por quem se apaixonou e os filhos. Acredito que as lágrimas que lhe corriam pela cara quando nos via a nós, aqueles a quem não deu o devido valor, eram de agradecimento e de consideração pelo que estávamos a fazer por ele, nesta fase tão crítica e derradeira da vida. Ou eu quero acreditar que seja assim. Tenho receio que o meu fim seja semelhante. Sério que tenho. Porque a dor que advém da perda de alguém para a morte nem sempre é tão atroz e agonizante comparada com a dor de simplesmente ser esquecido, ser deixado a jazer sozinho, sem carinho e palavras de conforto, sem o calor de um abraço, de um beijo. Demos aquilo que nos foi possível dar. Não foi o bastante mas espero que tenha sido capaz de atenuar, por momentos, a sua dor. Paz à sua alma.